24 de setembro de 2001
No dia que cheguei em Praia, capital de Cabo Verde, houve uma tempestade fenomenal, com deslizamentos de terra e tudo. Chuva em Cabo Verde é coisa rara. Puxa, pensei, logo agora! Passei horas estudando a meteorologia com o plantão na Ilha do Sal, e com Margi no Rio. Não parecia coisa boa. Tive que adiar a travessia planejada para o domingo. Isso não devido a ventos contra, mas aos CBs nada amigáveis colados acima de Praia e logo ao sul onde ia passar. O sol ia levantar às 0723 GMT (0623 hora local) e o pôr do sol em Noronha seria às 2006GMT (1806 local). Eu teria aproximadamente 13 horas de luz para voar. Em linha reta, a distância é de 1242 milhas (2315 km). Adicionando 5% para desviar de tempestades, ficou um total de 1305 milhas (2420 km). Decolando com todos os tanques cheios, a melhor velocidade que eu podia esperar no início era 95 nós TAS (175 km/h), ou 13.7 horas de vôo. Sem levar em conta as viravoltas à procura de um caminho para evitar as tempestades. Teria que fazer alguma parte do vôo na escuridão e como não queria pousar em Noronha de noite, teria que decolar de Praia de noite. Isso me deixou bastante apreensivo devido aos temporais. O Ximango não está equipado para vôo noturno, não possuindo luzes no painel. Teria que usar uma lanterna de cabeça para enxergar os instrumentos, mas esse procedimento tem uma grande desvantagem porque quando levanto a cabeça, a luz bate no canopy, me deixando cego e não consigo ver nada lá fora.
Daniel, que estava de plantão em Sal, me informou que na segunda-feira os CBs estariam bem ao sul de Praia, e essa notícia serviu de sinal verde. Marquei um táxi para as 04h15. O cara não compareceu! Lutei 30 minutos à procura de outro motorista àquela hora da madrugada, mas ninguém atendia o telefone. As ruas da cidade eram compreensivelmente desertas e levei um tempão até achar um táxi. Tudo isso parecia mau presságio. Só consegui alcançar o aeroporto depois das 05h00, o que me deixou furioso e mais nervoso ainda. Perdi mais tempo ainda na Sala AIS, porque esqueceram de cobrar no dia anterior os US$100 adicionais para uma decolagem noturna. Finalmente, decolei às 0545 (0645 GMT), um milagre nestas circunstâncias.
Como previsto, não havia nuvens no início e nivelei a 2000 pés. Estava preocupado, não querendo queimar muita gasolina porque os testes feitos no dia anterior mostraram uma inexplicável tendência a consumo alto. Graças a Deus, tinha um vento de cauda e ajustei a potência ao mínimo possível para manter 95 nós (175 km/h) de velocidade no solo. Quando consegui uns bons 100 nós, fiquei bem feliz. Não havia lua, mas algumas estrelas ajudaram a me orientar um pouco. Lá pelas 0730 GMT, estava em plena luz do dia e liguei para Margi no telefone da Nera para avisar a hora da partida. Tinha marcado as 0830 para chamar André Sampaio, em Noronha, no HF. Doze anos atrás, André ajudou minha outra travessia do Atlântico, com Margi, em sentido contrário. E lá estava ele novamente me ajudando, desta vez com equipamentos e antenas super poderosos. O sinal estava forte e me deu conforto poder contar com ele porque sabia que ia perder contato logo com os rádios de Dakar e da Ilha do Sal.
Eu estava com bom astral. O tempo era bom, apenas alguns CBs isolados que podia contornar facilmente. Os ventos ajudaram a manter o consumo de combustível bem baixo. As 0910, passei por cima de um navio em sentido contrário. Anotei sua posição e direção – nunca se sabe!
Aí, chegou uma bomba de Sal no HF. “Há uma depressão tropical em formação na posição Rakud, com ventos estimados em 50 nós (90 km/h) de 130 graus”. A mensagem foi repetida duas vezes e depois veio uma pergunta pesada: “Quais são suas intenções?” Acho que ele pensou que ia dizer que estava retornando para Praia. “Obrigado pela informação,“ respondi com calma, enquanto tentei raciocinar se deveria voltar ou não. Antes de embarcar nesse vôo, eu sabia que teria que enfrentar algumas tempestades – mas não uma depressão tropical, daquelas que nascem furacões! A posição Rakud era bem além do meu ponto de não retorno, a 5 horas de vôo de Praia. Eu tinha me preparado para encarar o mau tempo bem cedo no vôo, quando ainda havia a possibilidade de voltar para trás, e não mais longe onde, se não desse para passar, cairia no mar.
Minha primeira reação era ligar para Margi para que verificasse o tamanho e a posição do fenômeno para me ajudar decidir se devia desviar pela direita, pela esquerda ou voltar logo para Praia. Durante 2 horas, Margi, Lelo e André fizeram dezenas de ligações e checaram todas as imagens de satélite que conseguiram achar. Enquanto isso, eu mantive o rumo ao ponto de não retorno. Foi duro olhar para baixo e ver aquelas ondas, pensando que possivelmente teria que refazer esse caminho todo contra o vento. Então resolvi procurar um caminho para passar, para continuar, seja como for a notícia que me dessem. A cada milha que voava rumo ao Brasil com ventos a favor, estava economizando combustível e aumentando o alcance para os desvios necessários. Logo mais veio a informação que não era uma depressão tropical, mas uma onda tropical, uma série de CBs típicos da ZCIT – zona de convergência intertropical. André me passou uma comunicação de Recife, avisando que era quase impossível ter ventos excedendo 30 nós nessa onda tropical. Então, fui em frente: Brasil, estou chegando! Estava resolvido encarar o que viesse.
Às 1045 GMT, passei o ponto de não retorno. Pouco tempo depois, veio a primeira batalha com nuvens muito baixas e chuva. Desviei 30 graus para o Leste, seguindo os conselhos da Margi. “As formações são bem mais pesadas à sua direita e avançam rumo ao Oeste, então sempre desvie pela esquerda se tiver que sair da rota ideal”. Quando a velocidade caiu para 85 nós e comecei a queimar muito combustível, resolvi desafiar o monstro cara a cara. Desci de 2.000 pés de altitude até uns 100 pés, reduzi a velocidade para melhor lidar com a turbulência, apertei bem o cinto, guardei todas as câmeras e equipamento solto e me preparei para o pior.
Uns segundos antes de passar pela cortina escura de chuva, verifiquei a bússola para lembrar o rumo necessário para sair dali se não desse para continuar. Ao entrar na chuva, tive que descer mais para manter contato visual com as ondas o tempo todo. Estava apenas 5-10 metros acima delas. Em certa hora, vi que o altímetro marcava abaixo do zero, isso devido à alteração da pressão atmosférica. Fixei o zero, para ter uma referência caso perdesse as ondas de vista. Tal como fiz muitas vezes no Extremo Oriente quando batalhava com as monções, prossegui logo acima do mar, super concentrado. Um segundo de descuido seria o fim, se a turbulência jogasse uma asa mais baixa que a outra. Era muito difícil ver alguma coisa na minha frente através da chuva forte que batia no canopy.
De repente, não vi mais as ondas. Sem vacilar, comecei uma curva de 180 graus e subi alguns metros. Foi o momento mais perigoso. Ao fazer uma curva muito inclinada, há risco de estolar, além de tocar na água com umas das imensas asas. Parecia demorar uma eternidade para alcançar o rumo 040 que eu precisava para sair desta situação. Aí abaixei o nariz com cuidado para perder os 200 pés ganhos na virada. Quando finalmente o altímetro marcava 50 pés pelo zero que eu mesmo fixei pouco tempo antes, já podia ver as ondas novamente. Depois de me acalmar e relaxar um pouco, escolhi um novo rumo de 090 para tentar desviar do temporal.
Tentei novamente e fracassei. Na terceira tentativa, consegui passar logo acima da água após muita insistência. Na próxima conversa com a equipe e André, soube que descobriram um site da NASA com imagens de satélite atualizadas a cada meia hora em vez do habitual seis horas dos outros sites meteorológicos. No site da NASA, conseguiram localizar a posição exata dos CBs. Encarei outro bloco de mau tempo, mas passei “facilmente” voando a 300 pés. Depois disso, sai de repente debaixo de um céu azul e assim foi durante o resto da travessia. Subi para 10000 pés, e a velocidade cravou entre 105-110 nós (195-205 km/h) durante duas horas. Quando começou a cair novamente para 95 nós, não fiquei tão preocupado porque tinha certeza que as reservas de combustível eram suficientes. Às 1730, os tanques adicionais estavam vazios, mas faltavam apenas duas horas para chegar em Noronha. Quando por fim surgiu o pico de Noronha no horizonte, não há palavras para descrever meu alívio e minha felicidade. Declaro agora que essa ilha é a minha preferida de todas! Mesmo estando cansado, não resisti e fui dar um sobrevôo antes de pousar, curtindo o visual e a própria existência dela. Coloquei as rodinhas do Ximango no solo às 1730 (hora local: 1930 GMT), 12 horas e 30 minutos após a decolagem de Cabo Verde.
André não só me ajudou a atravessar o oceano, me vigiando com suas palavras encorajadoras, mas lá estava ele para me dar às boas vindas em sua pousada. A ilha de Fernando de Noronha já é um paraíso, mas na Pousada da Morena, em boa companhia e comendo uma deliciosa massa, eu estava no céu (novamente)!
Talvez ninguém esteja mais surpreso do que eu, que consegui cruzar aquele imenso oceano.
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